Cônego Luís Vieira

por André Candreva publicado 15/03/2018 17h16, última modificação 15/03/2018 17h16

Luís Vieira da Silva nasceu em Soledade (atual Lobo Leite, distrito de Congonhas), lugarejo da Freguesia de Ouro Branco, Termo de Vila Rica, em 1735 (foi batizado no dia 20 de fevereiro). Era filho do Alferes (Auxiliares) Luís Vieira Passos e Josefa Maria do Espírito Santo. Sua mãe, em 1789, viúva, morava na fazenda denominada "do Guido", em Soledade, lugar conhecido também por Passagem do Ouro Branco. O pai era natural de São Miguel de Vilela e a mãe da Freguesia de Santo Ildefonso, Porto - Portugal; casaram-se em Soledade e viveram sempre na fazenda do Guido, sendo Luís Passos carpinteiro. Matriculou-se em 17 de agosto de 1750, aos 15 anos de idade, no Seminário de Mariana. Ali ficaria dois anos, até que, em dezembro de 1752, foi mandado a São Paulo, fazer os cursos de Filosofia e Teologia Moral, no Colégio dos Jesuítas. Seu professor no Seminário de Mariana passou-lhe o seguinte atestado, encaminhando-o aos colegas jesuítas: "José Nogueira, Sacerdote professo da Companhia de Jesus, lente atual de Moral e mestre de Latim neste Seminário de Mariana e examinador sinodal do mesmo bispado. Certifico que o seminarista Luís Vieira da Silva, desde que entrou neste Seminário aos dezessete de agosto de 1750, sempre procedeu com muita exemplaridade de costumes na freqüência dos Sacramentos e mais exercícios de espiritual devoção conforme a obrigação dos seminaristas, sem que nestes dois anos e quatro meses tivesse queixa alguma dele, assim in genere morum, como na aplicação profícua dos seus estudos, nascido um e outro proveito do seu bom gênio e engenho. E para que conste desta verdade, lhe passei esta por mim feita e assinada, e jurada in verbo Sacerdotis.

Seminário de Nossa Senhora da Boa Morte, 7 de dezembro de 1752. José Nogueira". Luís Vieira graduou-se em Filosofia e Teologia em 1757 em São Paulo, aos vinte e dois anos de idade. Regressou a Mariana e assumiu, antes de ser ordenado, o cargo de professor de Filosofia no Seminário, cadeira que ocuparia por 32 anos, até ser preso em 1789. Nesses 32 anos formaria a monumental biblioteca que lhe foi seqüestrada, acervo cultural riquíssimo que, em parte, vem sendo reencontrado nestes últimos anos.

Ordenou-se padre a 21 de março de 1759, aos 24 anos, em cerimônia realizada em Mariana pelo Bispo Frei Manuel da Cruz. Em 1762 pretendeu ser pároco de Catas Altas e Rio das Pedras (hoje pertencente ao município de Congonhas), mas não chegou a fazer o concurso. De 1770 a 1773 exerceu o cargo de Comissário da Ordem Terceira de São Francisco de Assis de Vila Rica; em 5 de dezembro de 1771 fez o sermão inaugural da Igreja, obra de Aleijadinho. Foi vigário interino de São José del-Rei, passando o cargo ao efetivo, Padre Carlos Correia de Toledo, em 1777.

Em 4 de julho de 1780, vagou o lugar de Cônego de Sé de Mariana e Luís Vieira apresentou-se como candidato. Tinha, portanto, 45 anos de idade e 23 como professor de Filosofia do Seminário; já devia ter formado a sua biblioteca e solidificado seu renome como orador em todas as principais igrejas de Minas. O canonicato era um título eclesiástico sem poderes materiais, ao contrário do vicariato, que tornava seu titular rendeiro de tributos compulsórios. No dia 20 de setembro de 1781 foi lavrada Carta Régia de seu provimento no canonicato, documento que chegou a Mariana no início de 1782. Havia indisposição contra Luís Vieira no cabido de Mariana, causado pelo ciúme de sua extraordinária inteligência, pela suspeita de "jacobinismo", ou pela contrariedade ao seu estado não-celibatário, não se sabe ao certo. Imagina-se que a indisposição do cabido de Mariana contra seu cônego devia derivar-se de um dos dois seguintes motivos - ou de ambos: primeiro, Luís Vieira sempre fora um destacado cultor da Filosofia e da História e, como tal, durante mais de 20 anos lente no Seminário, granjeara admiração e impusera influência em várias gerações de padres; era um orador de fama reconhecida em toda Minas Gerais, chamado sempre para as cerimônias de maior destaque; segundo, Luís Vieira tinha uma vida sacerdotal incomum, pois tinha mulher e uma filha, fato impossível de ser desconhecido do público. Além disso, nessa vida secular paralela, acredita-se firmemente que foi um dos introdutores das práticas maçônicas em Minas, filosofia que teria abraçado com entusiasmo. E, sobretudo, Luís Vieira era uma capacidade intelectual muito acima da média de seus contemporâneos. O vigário geral de Mariana, futuro Cônego Santa Apolônia (Padre Doutor João Ferreira Soares) reteve o processo de canonicato de Luís Vieira durante quase todo o ano de 1782, enquanto tentava arranjar um motivo para justificar o impedimento. Teria forjado um processo em Sabará, no qual Luís Vieira era acusado de, através "de umas mulheres" com as quais tinha "amizade", ter fornecido pontos de concurso paroquial ao Padre Joaquim José de Alvarenga.

O pretendente a cônego incorria, assim, no crime de simonia, cuja pena era a excomunhão (algumas dezenas de anos antes, a Inquisição quereria levá-lo à fogueira). Sente-se nesse arranjo uma tentativa de tirar as ordens de Luís Vieira por um modo mais fácil; o estado não-celibatário e a paternidade de uma filha eram muito mais custosos de provar. Luís Vieira entrou com uma ação na justiça contra o vigário em 1782 e em 7 de março de 1783 o Ouvidor Geral de Vila Rica, Tomás Antônio Gonzaga, prolatou sentença favorável ao autor e arrasadora para o réu caluniador. Teria nascido aí a amizade entre os dois maiores líderes da Inconfidência Mineira. O vigário Soares foi obrigado a despachar o processo nesse mesmo mês, fazendo-o contrariado, incluindo no final: "Não tenho impedimento que lhe resultasse da devassa a que se procedeu na vila de Sabará por causa do concurso da igreja do Rio das Pedras - Fiat just. Soares". No dia 24 de março de 1783, Luís Vieira empossou-se como cônego.

Na década de 1780, Luís Vieira da Silva tinha a mãe, viúva, e mais duas irmãs, solteiras, vivendo na Fazenda do Guido em Passagem do Ouro Branco. Teve uma mulher, de quem nunca se soube o nome; em 1791, a filha de ambos, chamada Joaquina Angélica da Silva, era casada com um médico - Francisco José de Castro - que estava em viagem fora do Brasil e por isso residia em Vila Rica com um cunhado.

Diante de uma monumental biblioteca particular, Luís Vieira da Silva foi Filósofo, historiador, orador, analista profundo; foi o revolucionário por excelência, anunciando um Brasil livre, modelado segundo as teorias iluministas de que tão bem conhecia. A constituição da república brasileira sairia também de sua inteligência privilegiada, que já conjecturava há muito tempo como libertar e dar ao país segurança política. Imerso no processo de independência dos Estados Unidos, o cônego Luís Vieira percebeu o desmoronar do colonialismo. Não negou que lera a História da América Inglesa e que pesquisou o que sobre a mesma se publicava.

Luís Vieira da Silva foi preso em 22 de junho de 1789 aos 54 anos de idade. Depôs pela primeira vez na condição de preso em 1º de julho de 1789, na Casa dos Contos em Vila Rica. Foi interrogado mais duas vezes, nos dias 11 e 23 de julho de 1789 e acareado com Basílio de Brito. Seus depoimentos foram todos lacônicos. No terceiro depoimento, negou que tivesse abonado o ânimo do Alferes Joaquim José da Silva Xavier e que tivesse dito qualquer coisa contra o direito do Rei de Portugal sobre o Brasil (os devassantes estavam de posse da denúncia de Basílio de Brito, mas Luís Vieira não sabia). Trazem à sua presença, então, Basílio e lêem a sua denúncia; Luís Vieira responde que "era tudo uma soleníssima falsidade". Nega que tivesse falado a Basílio em particular. Basílio insiste, lembrando outros detalhes da conversa: Vieira lembra o caso da morte por Borba Gato do enviado real à rota Fernão Dias Pais, Dom Rodrigo de Castelo Branco. Luís Vieira aproveita a chance para confundir e humilhar o acareante e os interrogadores, dizendo que Basílio mentia, porque à época Minas não tinha nem Governador (o delator, meio obtuso, dissera que o Padre lhe contara sobre a morte de um governador em Fidalgo, Comarca de Sabará). Com isso, encerrou-se a acareação, porque talvez os devassantes desconhecessem a história de Minas e ficassem sem saber o que fazer diante da incongruência do acareante, frente a frente com um cérebro do porte de Luís Vieira.

No dia 23 de setembro de 1789, foi remetido ao Rio de Janeiro, junto com Luiz Vaz de Toledo Piza e Domingos de Abreu Vieira e lá preso na Fortaleza da Ilha das Cobras. Ficou quase um ano na prisão, incomunicável, até sair para ouvir a sentença. Mas nem isso lhe foi dado: os eclesiásticos nunca souberam o resultado do julgamento sobre eles.

Os réus eclesiásticos foram surpreendidos por uma decisão sui generis da Comissão de Alçada que veio de Lisboa especialmente para julgar os inconfidentes mineiros: sua sentença não lhes seria dada a conhecer. Seria lavrada e remetida diretamente à Rainha para decisão final. A Carta Régia secreta que a Comissão trouxe ao Brasil continha uma disposição especial para os eclesiásticos - "quanto aos réus eclesiásticos, que sejam remetidos a esta Corte debaixo de segura prisão com a sentença contra eles proferida, para à vista dela, eu determinar o que melhor me parece". Dona Maira I era muito religiosa e seu Ministro do Ultramar, Dom Martinho de Melo e Castro, que parece ter sido o inspirador da Carta, era também padre. Certamente receavam ambos também a repercussão negativa dentro do clero e sobre o povo de uma sentença que mandasse pendurar pelo pescoço diversos clérigos. Quanto a Luís Vieira da Silva soube-se então que a Alçada considerou-o réu secundário (ele derrotou com sua estratégia o poder dos devassantes) e sentenciou-o a degredo perpétuo para a Ilha de São Tomé. Ficou preso por quatro anos na Fortaleza de São Julião da Barra, esquecidos. Em 1796 os réus obtiveram autorização para deixar a prisão e recolheram-se a conventos. Luís Vieira da Silva foi para a clausura no Convento de São Francisco da Cidade e ali permaneceria mais seis anos. 

Em 1802, os padres começaram a ser indultados. O Padre José Lopes de Oliveira havia falecido na prisão em 1796.

É certo que Luís Vieira da Silva regressou ao Brasil. Há informações, sem fundamentação, de que teria ido viver o resto de seus dias em Angra dos Reis ou Parati, contando então, em 1805, 70 anos de idade, dos quais os últimos 16 como prisioneiro. Há notícia de que teria falecido em 1809 em Parati, sendo lá enterrado, como simples sacerdote; mas há suposição em contrário, mais lógica diante da inexistência de provas, de que teria regressado a Soledade para viver em companhia das irmãs e da filha. Luís Vieira da Silva renunciou ou foi exonerado do canonicato da Sé de Mariana em 1797, pela Mesa de Consciência e Ordens de Lisboa.

Após análise e releituras incontáveis dos documentos, é convicto que Luís Vieira da Silva foi o maior líder da conspiração republicana mineira de 1785-1789, ao lado de Tomás Gonzaga. Luís Vieira foi o criador do movimento, líder intelectual, coordenador, estrategista. A opinião da Alçada no acórdão, reconhece que ele teve a primazia na organização da conspiração.

A historiografia é unânime em declarar que Luís Vieira da Silva foi uma inteligência brilhante. A ele são dedicadas as seguintes expressões: "um dos grandes oradores sacros de Minas e foi considerado, sem contestação, entre os mais sábios intelectuais de sua geração" - "o padre mais notável da Inconfidência", "ilustração respeitável para o tempo em que vivia", "pregador de renome" - "homem de talento e ilustração. Cultor apaixonado da História"- "Homem de grande inteligência e vastíssima cultura espiritual" - "a maior figura intelectual de Minas no século dezoito" - "intelectual deveras" - "homem de cultura profunda e eclética" - "o mais instruído e eloqüente de todos os conjurados", "Diretor espiritual, monopolizador das letras e cultura do tempo" - "cabeça sólida e caráter da melhor fibra". Na cabeça do cônego Luís Vieira da Silva, fundir-se-iam numa síntese feliz as verdades da fé ou do coração com as verdades da razão e da ciência.

Foi talvez a maior "cerebração" de Minas, na época da Inconfidência, e, muito provavelmente, um dos primeiros a coordenarem o movimento libertador. Homem de grande inteligência e vastíssima cultura espiritual, o Cônego Luís Vieira foi, sem dúvida, um dos organizadores e propagandistas de uma reação contra a Coroa portuguesa, preparando as idéias filosóficas iluministas e doutrinando os dirigentes das elites de sua época.